As várias faces da besta-fera
Repórteres e apresentadores iniciavam mais um macabro espetáculo de cobertura pró-Imperialismo. A imprensa brasileira nascida obsoleta com o apoio da oficialidade da chegada fugidia da corte portuguesa infelizmente vem confirmando sua sina de estar sempre junto aos Impérios, divulgando a mesma verdade oficial dos livros didáticos feitos à época da ditadura engendrada com total apoio deste mesmo Império; primeiro para o Brasil depois por toda a América Latina. No entanto, nem ao menos esta tão próxima lembrança faz destes também trabalhadores, cooptados para o projeto do capitalismo, terem uma gota de análise, avaliação.
O início da II Guerra do Golfo mais uma vez nos deixa apreensivos não só com os destinos do mundo, mas com a interpretação das ações e, sobretudo, com o que se traduz na mais absoluta confiança (ideológica ou não, aqui já não faz tanta diferença) em informações transmitidas por ‘organismos de inteligência jornalística’ estadunidenses.
As contradições da História da Humanidade parecem, às vezes, verdadeiros contos de fadas, pois, se nossa herança de oficialidade saiu-nos melhor que a encomenda, por ora, os jornalistas portugueses reagem dignamente frente às expectativas de um correspondente de guerra. E foi um repórter português da RTP o primeiro a anunciar que já havia um bombardeio, enquanto atônitos repórteres da TV Cultura, da TV Globo, da GloboNews simplesmente teimavam em anunciar, mesmo diante das imagens, que a Casa Branca – e o pior – que a CNN não havia anunciando nada confirmando os bombardeios. Uma imagem grotesca de ser ver: a fisionomia destas criaturas chamadas jornalistas.
A voz tensa do repórter Carlos Fino, que deu uma entrada às 22h no Jornal da Cultura, e retornou no exato momento em que começaram os sons do bombardeio, não foi suficiente como não foram suficientes as luzes de bombas e da bateria antiaérea. Foi necessária a declaração de George Bush concomitantemente ao ‘aparecimento da legenda da CNN’ para que, então, somente então, a imprensa brasileira começasse a divulgar que de fato havia acontecido um bombardeio. O mais incrível é que havia um analista na TV Cultura, cujo mérito é ter transmitido a maior parte das imagens da RTP, que teve a insensatez de dizer: “Vejam só, agora a TV Portuguesa retirou a legenda dizendo que teve início a guerra”. Numa tentativa de dizer que os jornalistas portugueses tinham se precipitado. Na verdade, os caracteres já estavam transmitindo outras informações de depois houve um retorno desta primeira informação. Simplesmente indigno, leviano e ultrajante. A gente pensa que já viu tudo de ruim e de destemperado, mas, não. Sempre conseguem nos surpreender.
Enquanto isto – na Sala de Justiça dos países pró-Imperialismo – nossos incríveis repórteres – talvez por segurança ou mesmo ordem das emissoras – estavam a léguas de Bagdá; Londres, Roma, Cidade do Kuwait, Nova Iorque. Nenhum deles estava em Bagdá. Pode ser questão de segurança, que não impediu os outros de estarem lá para dizer ao mundo o que diabos acontece quando um ser mentecapto como George Walker Bush resolve aquecer sua economia particular, digo: economia country. (Não estou sequer comentando nossa incapacidade técnica para transmissões deste tipo. Justo um país como o nosso que se vangloria por possuir emissoras com porte internacional e revistas com a quinta maior tiragem do mundo e outras pérolas da grande imprensa. É certo que jamais – eu e tantos outros – poderíamos estar em tão seleto time. Faço exceção para Cabo Barcelos, que até hoje é obrigado a fugir dos denunciados em seu livro Rota 66).
Antes desta incrível dúvida – sobre se havia ocorrido ou não o bombardeio -, quando se aperceberam que somente a TV Portuguesa tinha tais imagens rapidamente a CNN foi esquecida, somente voltando a ser voz única quando os argumentos do repórter português já não convinham, porque obviamente transmitiam verdades críticas.
O show de horror prosseguiu com outro furo da TV Portuguesa. Bush arrumando-se em frente às câmeras para talvez 1 bilhão de pessoas e falando baixinho, treinando seu discurso de tirano e pasmem – uma das imagens mais inacreditáveis que só quem estava acompanhando a TV Cultura (que retransmitia a RTP) pôde ver – trançando os olhos, caricaturado de estrábico, sorridente, enquanto sua cabeleireira particular tentava conter-lhe alguns rebeldes fios de cabelo. Um clown sem o nariz – com perdão aos clowns -, divertindo-se com a matança do povo iraquiano. A representação cabal da soberba. Fui tomada por indignação tão ruim (leia-se: impotência) que qualquer racionalidade para uma análise mais profunda sobre o que significa este desprezo tornou-se impossível naquele momento e ainda agora. Este Império tem de cair e nenhum outro pode surgir em seu lugar. Esta nação tem de saber que não há mais o mundo do entreguerras nem o do pós II Guerra Mundial. Nós temos de detê-los. Temos de ir às ruas participar como nunca de todas as manifestações. A “esquerda” estadunidense tem de (re)agir rapidamente também.
A CNN poderia ter transmitido esta paradoxal imagem, mas não o fez; rapidamente entrou com outra cena. Uma cena fria, que em linguagem jornalística significa algo atemporal.
Nos noticiários de hoje, até o que onde pude acompanhar, ninguém comentou a leviandade de um Bush fingindo-se palhaço para anunciar um bombardeio. E não qualquer bombardeio; um bombardeio que mais antipopular do mundo. Sem acordo sequer entre a burguesia internacional.
Se a imprensa televisionada pecou profundamente, convenhamos, não foi a única. No site do Estadão havia uma matéria, praticamente uma nota, cujo título era o seguinte: Iraque afirma ter repelido ataque “inimigo” na fronteira. Alguém pode me explicar jornalisticamente o porquê das aspas na palavra inimigo. Sem contar o restante do teor da nota, que deixa claro que até mesmo quando a informação está errada, o governo de Bush arruma uma forma para dizer que se trata de estratégia militar. É um absurdo atrás do outro.
A outra papagaiada, digo nota, que aí não diz respeito ao veículo, mas propriamente ao nível de descaramento dos Estados Unidos, anuncia que o primeiro-ministro iraquiano, Tareq Aziz foi rastreado por satélite. Faça-me o favor!!! Um país que é vulnerável a ataques terroristas realizados com facas e que por pouco não acerta em cheio o Pentágono – o centro de toda a vilania – tem o despudor de dizer que o nível de precisão de sua maquinaria bélica chega ao ponto de não só acertar em cheio alvos civis, digo, militares, como agora, também, consegue atingir uma única pessoa identificada por satélite. Por que não utilizar tal recurso para achar Osama Bin Laden? Não é possível que tal precisão não suscite a pergunta de nenhum jornalista. Isto não é possível. Não é possível acreditar em tudo que vem dos estadunidenses. Todos começaram a tomar a pílula da obediência à la Fahrenheit 451 de Truffaut.
Se a pílula deles é a da obediência, a nossa tem de ser a da consciência e atitudes políticas de ruptura geral. Este mundo não permite que sejamos reformistas.
Gislene Bosnich, jornalista independente e socióloga, é consultora diretiva de MFN Comunicação
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